25.05.23 | Brasil
“É preciso questionar o que torna o ser humano insensível à dor de seu semelhante e intolerante às diferenças”, diz autora de “Dores Reveladas”
Danielle Goldrajch, autora do recém-lançado livro “Dores Reveladas”, elaborado junto com Sergio Niskier e Talvane M. de Moraes, fala à CONIB sobre a obra que reúne importantes relatos e avaliações feitas pelo psiquiatra brasileiro já falecido Dr. Oswald Moraes Andrade, contratado pelo governo alemão para fazer as perícias médicas que serviram de base para os processos indenizatórios e de tratamentos psiquiátricos de sobreviventes do Holocausto. “É preciso questionar o que torna o ser humano insensível à dor de seu semelhante e intolerante às diferenças. Precisamos honrar nosso passado, tratar o nosso presente e construir o nosso futuro com mais solidariedade e respeito à diversidade da vida. É a lembrança do passado, a consciência do presente e a construção do futuro o que nos cabe para que nunca mais ocorra uma tragédia como o Holocausto”, diz ela.
Como nasceu o projeto
Sou graduada e mestre em Psicologia, trabalho no Poder Judiciário, sou terapeuta cognitivo-comportamental e exerço atividade docente. Considero que o projeto desse livro se inicia em minha história familiar. Tenho a honra de ser filha do advogado Paulo Goldrajch, que foi um profissional atuante, defensor dos Direitos Humanos e presidente da Federação Israelita do Estado do Rio.
Em dezembro de 2006, quando ele faleceu, conheci o presidente da FIERJ que, na época, era Sérgio Niskier. Em homenagem ao trabalho de toda uma vida, Sérgio e eu organizamos a cerimônia de Shloshim, no Grande Templo Israelita do Rio de Janeiro.
Nesse mesmo período, convivi com o Dr. Talvane de Moraes, psiquiatra forense, nos debates da Rádio Haroldo de Andrade, onde eu também era debatedora. Anos depois, trabalhei com o Dr. Talvane, no Forum Permanente da Criança, do Adolescente e da Justiça Terapêutica na EMERJ (Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro), onde, sob a diretriz da Desembargadora Dra. Ivone Caetano, realizamos eventos, palestras e estudos.
Reencontrei o Sérgio Niskier em uma aula de Hebraico, em 2021 e ele contou como teve o conhecimento da existência de pareceres psiquiátricos de sobreviventes do Holocausto, feitos pelo Dr. Oswald Moraes Andrade, na década de 60, contratado pelo governo alemão para avaliação dos danos às vítimas e que estavam sob a guarda do Dr. Talvane de Moraes.
Entramos em contato com o Dr. Talvane e conversamos sobre a possibilidade de doação dos documentos a um museu para estudo e preservação do material histórico. Passamos a refletir sobre a melhor forma de divulgar o material, sendo um compromisso ético em relação aos sobreviventes, aos combatentes brasileiros que lutaram na Segunda Guerra e à história de toda humanidade, divulgação esta que era o desejo do Dr. Oswald Moraes Andrade.
O livro inclui, além dos pareceres psiquiátricos, textos dos organizadores, do jornalista Bruno Thys e da professora Sofia Débora Levy. As orelhas do livro foram escritas pela desembargadora Denise Levy Tredler e pelo advogado Carlos Roberto Schlesinger. A revisora de todos os textos foi Tania Plapler Tarandach. Convidamos também a artista plástica Bahie Banchik Israel para realizar a arte da capa.
Após a divulgação do livro, houve reações emocionantes e tivemos o conhecimento de que o governo alemão continuou a contratar outros profissionais para o mesmo fim, como foi relatado pelo psiquiatra Werner Zimmerman, radicado em Florianópolis, que realizou diversas reavaliações na década de 90. Isso mostra que ainda há muito a conhecer e vamos continuar nossas pesquisas para ter acesso a outros documentos produzidos, acreditando que instituições também participarão dessa pesquisa.
Relatos impactantes
Todos os relatos foram impactantes. Quando se pensa que já se ouviu muito sobre o Holocausto, uma nova faceta da crueldade nos chega ao conhecimento e isso ainda é apenas uma pequena parte dos fatos.
Podemos observar que os diagnósticos psiquiátricos encontrados nos pareceres médicos, feitos pelo Dr. Oswald Moraes Andrade, incluem termos como “distúrbios neuróticos, síndrome psíquica proveniente de prolongado e progressivo estresse, neurose traumática, neurose de angústia, depressão ansiosa”, entre outros, que se encontram nos documentos publicados.
Segundo a classificação do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, compreendemos que esses diagnósticos e os sintomas descritos se afinam com as características do conceito atual de Transtorno do Estresse Pós Traumático. A definição do Transtorno do Estresse Pós Traumático, assinala que esses sintomas ocorrem após a vivência de uma situação traumática e perduram por mais de um mês. Ou seja, não é uma reação aguda de estresse diante de um trauma, mas é o prolongamento desses sintomas, que pode durar indefinidamente, o que ocorre geralmente por causa da intensidade e da frequência do trauma vivenciado, ao lado do sentimento de impotência para se defender deles, como foram os traumas descritos pelos sobreviventes.
O dano moral é imponderável, o sofrimento infligido e suas repercussões são imensuráveis. Indenizações e tratamentos são o mínimo para que as vítimas possam conseguir seguir suas vidas. Quanto aos sobreviventes entrevistados pelo Dr. Oswald, não tivemos acesso às informações posteriores, ao longo dos processos indenizatórios, de forma que não temos como apresentar esses dados.
Resultados de tratamento
Esses dados (sobre os resultados de tratamentos) também não foram disponibilizados nos documentos que tivemos acesso, de forma que não podemos afirmar sobre os casos concretos dos sobreviventes entrevistados pelo Dr. Oswald. Tivemos acesso aos laudos, mas não ao acompanhamento dos tratamentos. De forma geral, os estudos sobre o Transtorno do Estresse Pós Traumático assinalam que os traumas são configurações complexas e há muitas áreas de pesquisa que buscam caminhos de compreensão e tratamento. Existem atualmente protocolos de tratamento psicológico, por vezes, ao lado do tratamento medicamentoso, como os estudos sobre a terapia cognitivo-comportamental. Entendo ser fundamental um relacionamento humano acolhedor e através dele podemos buscar a reconstrução psíquica. Dores podem ser reveladas e novas forças podem ser construídas.
Consequências do Estresse Pós-Traumático
Segundo a descrição do Transtorno do Estresse Pós Traumático, os sintomas desse transtorno podem ocorrer diante da vivência direta do trauma, mas podem também se desenvolver nas pessoas que testemunharam o trauma sofrido por outra pessoa ou mesmo naqueles que sabem que esse episódio traumático ocorreu com um familiar ou com um amigo próximo. Ou seja, a possibilidade do desenvolvimento do Transtorno do Estresse Pós-Traumático ultrapassa a pessoa que viveu o trauma, podendo atingir aqueles que presenciaram ou conheceram a vivência do trauma por outra pessoa e incluir as gerações seguintes dos sobreviventes do Holocausto.
Sobre essa dor que percorre as gerações, podemos citar o trabalho da médica israelense e pesquisadora nos Estados Unidos, Rachel Yehuda, que conduz estudos sobre o Transtorno do Estresse Pós-traumático e aborda a situação dos sobreviventes do Holocausto e de seus descendentes. A neurocientista estuda o tema da Herança Epigenética, ou seja, como os sintomas do estresse pós-traumático podem ser encontrados também nos descendentes e quais seriam as formas pelas quais ocorre essa transmissão entre as gerações.
Sabemos que uma pessoa que passou por um grande trauma ou mesmo foi criada num ambiente familiar ou social de medo e terror tem grande possibilidade de vivenciar essas emoções. Dessa forma, pode desenvolver um senso de fragilidade diante dos desafios da vida. Essa vulnerabilidade psíquica precisará ser reconhecida e transformada para que sua vida se manifeste de forma ampla em toda sua potencialidade.
Gostaria de salientar que precisamos olhar para o nosso contexto e refletir sobre o que torna uma sociedade vulnerável à manipulação de líderes autoritários, o que torna uma sociedade vulnerável à adoção de políticas discriminatórias, cruéis e excludentes. Questionar o que torna o ser humano insensível à dor de seu semelhante e intolerante às diferenças. Precisamos honrar nosso passado, tratar o nosso presente e construir o nosso futuro com mais solidariedade e respeito à diversidade da vida. É a lembrança do passado, a consciência do presente e a construção do futuro o que nos cabe para que nunca mais ocorra uma tragédia como o Holocausto.