30.11.22 | Brasil
“Quando comecei a estudar na escola sobre o Holocausto, me reconheci completamente judeu”, diz presidente da Comunidade Israelita Capixaba
Douglas Miranda, presidente da Cicapi (Comunidade Israelita Capixaba), fala à CONIB sobre sua trajetória na vida comunitária, sobre como se descobriu judeu e sobre a comunidade judaica de Vitória, no Espírito Santo.
Trajetória
A minha trajetória na vida comunitária no Espírito Santo começou há mais de 20 anos. Eu fazia parte de um grupo muito pequeno que se reunia em nossas casas para o Shabat e outras celebrações judaicas. Até então era apenas um grupo fechado que se dedicava a atividades religiosas judaicas. Mas, aos poucos o grupo foi crescendo e passamos a celebrar atividades maiores, como o Yom Kipur, em Campos dos Goytacazes, no norte do Rio de Janeiro, e também na casa de amigos. Não era um grupo grande, como ainda não é até hoje, mas era um grupo que tinha muita força e união. Isso fez com que nos organizássemos, como comunidade.
Conquistas e desafios
Quando se está à frente de uma comunidade não importa o tamanho dela: o trabalho tem que ser sério. Saber que essa atividade envolve uma série de fatores, tanto pessoais quanto profissionais. E, com o passar do tempo, sentimos necessidade de nos organizar, de ter um local próprio, sair da informalidade e passar para algo mais formal, porque começamos a crescer e receber pessoas vindas de fora.
Para criar a Cicapi – e isso eu digo com muito carinho -, tivermos um apoio muito grande da Revital Poleg, que na época era representante da Agência Judaica no Brasil. e de Sergio Napchan, atual diretor da CONIB. Ambos estiveram aqui em Vitória e nos disseram: “Vocês vão ter todo o nosso apoio, mas o trabalho é de vocês. Vocês é que vão ter que fazer tudo acontecer”. E assim fizemos. Já de início conseguimos com que a prefeitura de Vitória reconhecesse a data de 27 de Janeiro - Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto -como uma data oficial do calendário da cidade. Isso, com a ajuda de um deputado estadual – dr. Jorge Silva, do Partido Humanista da Solidariedade (PHS) - que tínhamos na época, acabou chegando até Brasília com uma proposta de que avance em uma lei nacional, o que ainda não aconteceu, mas vamos voltar a dar andamento a essa questão junto com a CONIB.
Mas creio que o maior desafio foi desmistificar, dentro de uma sociedade que não estava habituada com judeus, algumas questões e trabalhar outros temas ligados ao antissemitismo. Aqui as pessoas acreditam que é algo corriqueiro e normal falar expressões antissemitas, ou agir de determinada maneira. Nós tivemos uma situação muito complicada aqui com um professor que dava aula de História numa escola particular aqui na grande Vitória – na maior escola privada do Espírito Santo -, em que ele foi vestido com uniforme nazista para dar uma aula sobre o Holocausto. Isso teve grande repercussão na imprensa e tivemos o apoio, inclusive, de alunos desse professor. E a Cicapi precisou se manifestar naquele momento, dizendo que aquilo não era correto. Na ocasião também fomos procurados pelos jornais e o professor teve que se retratar, embora o tenha feito também de forma errada. Ele escreveu um artigo nos jornais se desculpando e no final citou a mesma frase exibida na entrada do campo de concentração de Auschwitz: “O trabalho liberta”. Ou seja, ele continuou sem entender o que havia feito.
Mas essas são questões que gosto muito de trabalhar, tenho muito amor pelo judaísmo. É algo que está dentro de mim e farei o que for preciso e o que estiver ao meu alcance para que mantenhamos a luz do judaísmo acesa na região. Para isso sei que conto com total apoio da comunidade. Temos um grupo unido, com o qual conversamos frequentemente sobre essas e outras questões.
Atualmente estou cursando o Instituto de Formação Rabínica Reformista com o objetivo de futuramente termos um rabino em Vitória.
A comunidade capixaba
Temos uma pessoa na comunidade, uma senhora, que é filha de pai alemão e mãe argentina, ambos judeus, e que nasceu aqui no Espírito Santo na década de 1950, ou 1940. Ela é a única judia nascida no Espírito Santo. Ela conta que por muitos anos a sua família não praticou o judaísmo por medo. E a grande maioria dos membros da comunidade (99%) veio de outros estados, como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais – eu mesmo nasci em Belo Horizonte. Essas pessoas vieram a trabalho e acabaram ficando, porque o Espírito Santo está vivendo um momento de um boom econômico, com grande crescimento populacional. E essas pessoas vêm para Vitória porque a cidade é uma espécie de mini Rio de Janeiro, tem praia e boa estrutura. Temos violência, infelizmente, mas em menor escala que em outras cidades grandes. Sempre chegam a nós informações de que há pessoas morando em Vila Velha, por exemplo, e que frequentavam a CIP (Congregação Israelita Paulista). E isso acontece com certa frequência e nós, da Cicapi, imediatamente, entramos em contato. Hoje, temos cadastradas na Cicapi 23 famílias. São poucas pessoas, mas acredito que a tendência é esse número aumentar daqui para a frente.
Origem
Eu não nasci numa família judia, meus pais não são judeus. E foi na escola, estudando sobre o Holocausto, que me aprofundei na questão e passei a pesquisar por que isso aconteceu com os judeus. O que eles fizeram para merecer aquilo? O que havia por trás daquilo? Fiquei incomodado com isso e comecei a me aprofundar na questão até entender o que é ser judeu. Foi aí que eu me reconheci completamente como judeu e quis seguir o judaísmo. Na época eu tinha 13 anos, conversei com meus pais e, no início, eles estranharam a minha escolha, mas depois, diante da minha determinação, aceitaram e passaram a me apoiar. Foi difícil esse processo porque minha família é de tradição católica. Temos, inclusive, na família, uma santa, parente de quarto grau de minha avó. Eu fui aos Estados Unidos, fiz intercâmbio e lá eu tive a oportunidade de frequentar sinagogas, onde fui muito bem recebido, e frequentei grupos juvenis judaicos. E, quando cheguei à fase adulta, participei de estudos na CIP e hoje me sinto muito feliz onde estou, liderando uma comunidade judaica e como estudante de formação rabínica. Isso só comprovou a minha vocação. E tudo o que fazemos com sentimento, com kavaná (devoção), com sinceridade, acabamos colhendo os frutos. Então, hoje me sinto muito judeu, muito sionista, amo o Estado de Israel, estudo o judaísmo e esse estudo é contínuo. E é com grande alegria que celebro as datas judaicas. Atualmente meus pais se sentem muito orgulhosos da escolha que eu fiz e minha mãe diz sempre com muito orgulho: “Meu filho está estudando para ser rabino”.
Mensagem aos jovens
Temos aqui uma juventude bastante informada e precisamos do apoio deles, para que sigam nossos passos e deem continuidade ao nosso trabalho. Foi o que eu disse recentemente a um jovem durante o seu bar-mitzva aqui: “Você tem que se preparar para um dia assumir aqui essa função”. Nós costumamos fazer encontros de conversas, porque acho que essa troca de energia, é necessária e positiva. Hoje os jovens estão muito ligados em computador, celular, e eu venho de uma geração que as provas no colégio eram impressas em mimeógrafos e a folha de papel vinha cheirando a álcool e lembro que eu adorava aquele cheiro. E que bom que hoje eles contem com a tecnologia para se informar, ter uma visão mais avançada e possam trazer isso para a comunidade. Eu diria, portanto, a todos os meninos e meninas que já estão em movimentos juvenis e que se sentem responsáveis pela continuação do judaísmo que se aproximem das lideranças, participem das discussões, porque a troca de aprendizado é muito importante e enriquecedora para todos.