09.06.23 | Brasil
“Precisamos nos aceitar do jeito que somos, judeus e não judeus, como nos recomenda a Bíblia”, diz sobrevivente do Holocausto
A judia italiana Ariella Pardo Segre conta à CONIB a sua peregrinação, ainda criança, com seus pais, em fuga do nazismo durante a invasão alemã da Itália. “Contamos com a ajuda de algumas pessoas e com isso chegamos a uma estação de trem que transportava animais. Ao pé das montanhas rumo à Suiça, dormimos em albergues e até estábulos. Contamos com o apoio de contrabandistas de cigarros que nos serviram de guias”. “Terminada a guerra, a chegada ao Brasil foi linda”, diz ela sorrindo. E, em mensagem aos jovens, ela faz um apelo: “Precisamos nos aceitar do jeito que somos, judeus e não judeus, como nos recomenda a Bíblia”.
Origem:
Nasci em Trieste, na Itália, em 1940. Trieste foi conquistada pela Itália durante a Primeira Guerra. Antes pertencia ao império austro-húngaro, portanto as leis antissemitas foram mais severas lá do que em outras cidades da Itália. Isso porque lá ainda prevalecia o espírito alemão, apesar de sua população ser, na maioria, italiana. Lá foi instalado o primeiro campo de concentração da Itália. Foi também o primeiro lugar em que os judeus perderam a cidadania italiana. Então, essa parte reconquistada pela Itália após a Primeira Guerra foi a pior para os judeus.
Mas logo depois que eu nasci, a minha família se mudou para Bolonha, em busca de melhores condições de vida. Lá havia universidades e, como meu pai era professor universitário, Bolonha era a cidade mais adequada para as necessidades de minha família. As leis fascistas vigoravam em toda a Itália desde 1938, mas, com o governo de Mussolini, essas leis não foram colocadas em prática, porque até então o mandatário não tinha interesse em perseguir judeus. Ele não tinha interesse nessa questão por vários motivos, mas, principalmente, pela política ambiciosa dele focada em estender seu domínio à Palestina.
Em 25 de julho de 1943, Mussolini foi deposto e em 8 de setembro desse ano a Itália assinou um armistício com a intenção de acabar com a guerra, mas isso não aconteceu. O que houve foi que Hitler não quis perder o amigo e aliado Mussolini.
Desde a queda do líder fascista, Hitler planejava invadir a Itália a fim de impedir que os Aliados ganhassem espaço naquele território, o que os aproximaria da região dos Bálcãs ocupada pelos nazistas. Em 12 de setembro, os nazistas executaram uma operação cujo objetivo era o resgate de Mussolini. O “Duce” foi localizado e libertado pelos alemães e a Itália ficou então dividida em duas zonas: o norte tinha um governo fantoche e colaboracionista, montado pelos alemães e liderado por Mussolini; o sul ficou sob o comando das forças monarquistas e liberais, liderado pelo general Pietro Badoglio.< br /> Nessa época os judeus italianos viviam sem ter direito a cargos oficiais, mas não tinham suas vidas ameaçadas. A invasão de Hitler foi uma surpresa, chegou até Roma e lá também se iniciou uma caça aos judeus. Hitler chegou a aceitar um acordo, que previa o pagamento em ouro para não entrar em Roma. O museu da cidade tem esse episódio documentado com recibos dos que doaram ouro. Cinquenta quilos de ouro foram doados para que os nazistas não entrassem Roma. E não foram só os judeus que doaram, os romanos também fizeram doações. Mas Hitler não cumpriu o acordo e acabou invadindo Roma e lá fez com os judeus o mesmo que fa zia na Alemanha e em países que invadia.
Naquela época, sem internet, os italianos de outras cidades do país não sabiam o que acontecia em Roma. E Hitler contou com a colaboração dos fascistas italianos. Com a lista de judeus de Roma nas mãos os nazistas deram andamento à sua politica contra os judeus. Rapidamente, os nazistas, com a colaboração dos fascistas, localizaram as famílias judias. E assim chegaram à casa de meu pai. Não estávamos em casa no momento em que o caminhão da Gestapo chegou e um vizinho nosso conseguiu avisar meu pai a não voltar para casa. Ele arriscou a própria vida para nos salvar, enquanto muitos ganhavam dinheiro para denunciar judeus. Muitos agi am por medo, porque se fossem pegos ajudando judeus eles teriam a mesma sorte.
A fuga do nazismo
E assim começou a nossa peregrinação em fuga do nazismo. Contamos com a ajuda de algumas pessoas e com isso chegamos a uma estação de trem que transportava animais. E, assim, como animais, chegamos até Milão. Lá contamos com a ajuda de uma irmã de minha mãe que era casada com um engenheiro de obras públicas. Ele nos ajudou, mas minha tia, que também era judia, teve que fugir conosco.
Nesse caminho, ao pé das montanhas rumo à Suiça, dormimos em albergues e até estábulos. Contamos com o apoio de contrabandistas de cigarros que nos serviram de guias. Fazia muito frio e a neve acumulada era mais alta que eu. Foi aí que minha mãe deu o seu anel de noivado para que um guia me carregasse nas costas. Num desses locais em que parávamos para descansar havia um homem suspeito e minha tia, com receio de que ele nos denunciasse, montou guarda na porta do local para se certificar de que ele não sairia dali para nos denunciar. E, assim, continuamos em fuga e, como o solo era escorregadio, minha mãe caiu e eu comecei a gritar. Foi então que taparam a minha boca e me disseram que se eu gritasse todos seriam mortos. Para não sermos vistos pelos aviões alemães que sobrevoavam a região com frequência, subíamos as montanhas à noite e de dia buscávamos abrigo em algum local. Foi uma caminhada difícil para todos até achegarmos na fronteira. Lá havia uma cerca e um guarda de fronteira. Enquanto uns gritavam ‘voltem’, o contrabandista que me carregava me jogou por cima da cerca, dizendo ‘cuidem dela, sei que vocês não matam crianças’. Depois de um longo tempo, eles abriram a porteira e alguns puderam entrar. Minha família entrou. A partir daí caminhamos mais tranquilos, sem medo, enfrentando apenas as dificuldades do frio intenso e da neve.
A volta para ‘casa’
Terminada a guerra, chegavam caminhões dos aliados para levar os refugiados para seus países de origem. Chegando em nossa cidade, fomos alojados num acampamento com barracas de lona e uma delas passou a ser a nossa casa. Um dia, meu pai foi ver a nossa casa, mas lá já havia outros moradores. Meu pai entrou com a chave que tinha e o novo dono o expulsou, dizendo que antigos proprietários eram judeus e já estavam mortos e que a prefeitura lhes dera o documento de posse do imóvel.
Certo dia, aquele vizinho que nos ajudou a fugir nos procurou e nos ofereceu um dos dois quartos de sua casa. Depois que nos instalamos na casa, pedi a meu pai que me levasse à sinagoga que frequentávamos, mas ela não existia mais, estava destruída e o rabino havia sido deportado. Parte do prédio que abrigava a sinagoga ainda resistia e estava lotada de judeus vindos de várias partes da Europa.
A chegada ao Brasil
A minha vinda ao Brasil foi ótima, embora não tenha saído (da Europa) durante as maiores perseguições. Meus sogros chegaram aqui em janeiro de 1940 e tiveram bastante dificuldade porque as leis de Getúlio Vargas não permitiam a entrada de judeus. Entravam apenas os judeus que tinham muito dinheiro e tinham como provar que podiam se sustentar. Eu não tive problemas para entrar no Brasil. Apenas um contratempo, porque a minha certidão de nascimento trazia como raça a hebraica. Casei na Itália com um judeu italiano também nascido em Trieste, mas, como ele chegara antes no Brasil, já possuía a nacionalidade brasileira. Então na certidão de casamento da Itá ;lia constava que eu casei com um brasileiro. Mas isso não constava do meu passaporte. Então ficou assim durante muitos anos: pelas leis brasileiras eu era solteira e ele casado. Só consegui regularizar essa situação quando meu marido morreu.
Antissemitismo
Infelizmente antissemitismo sempre existiu. E por muitos anos o antissemitismo foi alimentado pela Igreja Católica que dizia que os judeus foram responsáveis pela morte de Jesus. Somente depois, com a encíclica Nostra Aetate, isso começou a mudar, mas o antissemitismo sempre existiu e os judeus enfrentaram todo tipo de perseguição ao longo da história, com as Cruzadas, a Inquisição e, depois, com Segunda Guerra, Hitler contou com o apoio e colaboração de um líder religioso muçulmano, o então mufti de Jerusalém, Amin al-Husseini, que o incentivou a exterminar os judeus.
Mensagem
Deixo a minha mensagem em especial aos jovens judeus. Sejamos ortodoxos, laicos ou liberais temos que nos aceitar do jeito que somos. Se ficarmos divididos nos enfraquecemos. E assim como temos que nos aceitar entre nós, judeus, temos que aceitar todos os outros povos, como recomenda a Bíblia, com respeito.