Se falarmos de arte como uma linguagem, acho que aprendi muito com textos que vieram do judaísmo, diz Artur Lescher - Fundada em 1948, a CONIB – Confederação Israelita do Brasil é o órgão de representação e coordenação política da comunidade judaica brasileira.
Foto: Divulgação CONIB

06.07.23 | Brasil

Se falarmos de arte como uma linguagem, acho que aprendi muito com textos que vieram do judaísmo, diz Artur Lescher

Artur Lescher, paulistano, artista plástico, destaca-se especialmente, no cenário da arte contemporânea por suas obras tridimensionais. Seu trabalho é sólido, como suas convicções. Suas esculturas são resultado de pesquisa em torno de: matéria, forma e pensamento. Conheça aqui um pouco como estes elementos se articulam também na vida de Lescher, que conta sobre a origem familiar, e a história de um antepassado que chegou ao Brasil graças ao barão Hirsch, a descoberta na escola não judaica, por volta dos 7 anos, de ser judeu, a formação religiosa eclética. “Se a arte é um exercício de linguagem eu acho que aprendi muito com alguns textos que vieram do judaísmo", diz ele.

Origem

Eu não tive uma formação propriamente judaica, de família. A família do meu pai veio da Polônia e da Bessarábia, na pré IIª Guerra, vieram praticamente como refugiados, estavam fugindo da Europa e a da minha mãe veio da Ucrânia, no início do século passado, de um certo modo também por conta das perseguições. E meu bisavô foi encarregado de fazer uma colônia de imigrantes judeus para o Sul do país. Embora fosse rabino, ele entrou nessa missão porque foi expulso da comunidade dele. Isso porque tinha uma biblioteca herética: ele gostava de ler Spinoza. Ele foi retirado do convívio e o Barão Hirsch, sabendo da história, convidou-o para liderar a expedição rumo ao sul do planeta em busca de terras para propor um estado judaico.  Essa família desse meu bisavô se afastou muito da prática religiosa e acabou entrando para o ramo da medicina e da ciência. Por incrível que possa parecer, todos os filhos desse rabino foram médicos ou cientistas. E isso foi passando de geração para geração até chegar na minha mãe que acabou não seguindo esse caminho, mas o da literatura por conta dos pais médicos que recebiam muitos escritores. Isso já no Rio de Janeiro. Minha mãe nunca praticou nada do judaísmo. Eu mesmo só fiquei sabendo que era judeu na escola, com 6, 7 anos de idade. Não se falava sobre isso em casa. Quando alguém falou que eu era judeu vim perguntar para minha mãe “Mãe, estão falando que eu sou judeu. O que é isso?  E foi um susto. Até então eu frequentava igreja, tinha natal na minha casa, era bem ecumênico e além disso minha mãe gostava do candomblé. Então minha formação religiosa começou bem sortida, bem cheia de influências. Meu pai, que era da família que veio da Polônia, era uma pessoa bem pragmática e não tinha ligação muito forte com o judaísmo. O máximo que se fazia era ter o jantar de Pessach, na casa da minha avó. Mas eu tomei todas as decisões em relação ao judaísmo. Quando fiz 13 anos pedi para o meu pai para eu fazer bar-mitzvá, depois, um pouco mais velho, pedi para entrar para uma escola judaica, que era uma instituição que fora fundada pela família da minha mãe, o Peretz, e lá fiz o colegial e entrei no movimento juvenil, o Dror Habonim. Também fui para Israel e fiz shnat por um ano. A minha aproximação com a comunidade judaica e esses valores todos foram escolhas minhas. E foi legal ter feito isso. Eu me casei com uma mulher não judia e tenho dois filhos que se consideram judeus. Também essa é uma questão: como não são filhos de mãe judia, tem sempre aquele questionamento por alguns grupos que acham que a transmissão do judaísmo é pelo ventre materno. Mas, a gente considera que é judeu aquele que escolhe ser judeu. Eles mesmos falam isso e acho que estão certíssimos. Até porque, historicamente, na tradição judaica, nem sempre a transmissão foi pela mãe.

Trajetória artística

Eu demorei muito para me afirmar como artista. Apesar de ter começado cedo, ter feito exposições bem cedo, com vinte e poucos anos já estava em uma Bienal. Foi tudo rápido e precoce, mas internamente, eu demorei muito para me colocar como artista. Eu tinha uma cobrança interna. Parecia pretensioso dizer “sou artista”. Parece que você é uma entidade. E eu sempre achei que a posição do artista era bem complicada e muito sofrida. E hoje, nesta sociedade do espetáculo em que a gente vive, você acha que o artista é a celebridade que só festeja, que está aí só para a curtição, para brilhar. E ninguém consegue ver muito o lado obscuro disso, o que te leva a fazer aquilo. E tem muitos artistas. inclusive judeus, um grande exemplo é o Kafka. Ele nunca aceitou que era escritor, ele quis queimar tudo que produziu. Só comecei a aceitar um pouco mais na medida em fui vendo o que tinha feito. Em retrospectiva. A primeira vez que publiquei um livro, a segunda vez eu pensei poxa produzi tantas coisas por tantos anos já posso entrar nessa categoria.

Por outro lado, não tive uma formação clássica. Fiz a faculdade de artes plásticas por necessidade, porque comecei a dar aulas, sem ter o diploma, em uma faculdade e daí foram me exigindo. Eu não achava que a escola de artes no Brasil faria grande diferença na formação de um artista. Por mais que tenha dado aula, eu falava para os alunos: o que vocês vão ter aqui é a possibilidade de abrir o seu espectro de visão, mas vocês vão ter que fazer sozinhos. Se você não for atrás do seu projeto, e tentar fazer quase como um trabalho de análise, de terapia, de entender a sua motivação, você não vai ser artista porque ninguém garante isso para ninguém.

Isso, além das dificuldades que a faculdade no Brasil tem. De formação mesmo. Eu gosto de filosofia e fiz faculdade de filosofia por cinco anos. Não posso dizer que sou filósofo porque não era nem tão bom aluno assim, e é uma faculdade muito difícil. Mas não dá para entender, pelo menos do meu jeito de pensar a arte, ela está muito ligada ao pensamento. Não é só um fazer. Então, mais uma vez, tem uma coisa que eu gosto, de fazer esse cruzamento com o judaísmo. Quando você lê um texto na Torah, tem a questão referencial, mas tem toda uma estrutura que está sustentando aquele discurso que é muito interessante e digna de estudo. Não é à toa que tem pessoas que se dedicam a vida toda a estudar o que está lá. Não é só a questão referencial, tem a estrutura do texto, as questões da cabala, daquela construção.

O aprendizado com o Judaísmo

Uma vez fui em uma sinagoga, o rabino perguntou o que fazia e eu disse que era escultor e ele ficou preocupado. Mas você não faz estátua, né? Porque tem esse mandamento, esse cânone, de não reproduzir imagens, mas é mais a figura humana, a representação de Deus. Tem essa proibição. Algumas religiões têm isso, outras não. Mas a discussão não é exatamente essa, porque trabalhar com imagens, evocar imagens, no repertório e na tradição judaica, isso está cheio. A questão da interpretação também atravessa a leitura dos textos religiosos. A questão da representação para um artista está superada faz tempo. Não estamos mais no século XVI quando era uma questão. A História da Arte mudou bastante temos uns dois séculos em que a questão da representação foi colocada em segundo plano. Não que não volte. Esses ciclos vão e voltam. Mas a Arte está um pouco além dessa questão. Se a gente está falando de arte como uma linguagem acho que aprendi muito de alguns textos que vieram do judaísmo. Ou pelo menos uma ideia de metodologia, da interpretação. Mesmo que exista um texto, considerado sagrado, este texto é sempre passível de ser reinterpretado. E é isso que deixa vivo esse discurso.

 


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