18.01.24 | Mundo
“Adeus às ilusões”
Artigo da jornalista e escritora Cora Rónai em O Globo desta quinta-feira (18) aborda o que chama de “densa camada de ódio submersa vindo à tona, logo normalizada pelo descalabro da guerra”. Leia a seguir o texto:
Minha sobrinha cortou relações com um amigo de longa data depois de uma série de posts “pró-Palestina” que culminaram com o infame “Os judeus não aprenderam a lição”. Tentou explicar a ele em quantos níveis essa frase é absurda, ofensiva e racista, mas não conseguiu: um problema clássico dos antissemitas é que eles odeiam ser chamados de antissemitas e fogem pela tangente politicamente correta do antissionismo. Ela está perturbada porque ele é de esquerda, faz todos os ruídos de uma pessoa boa e moralmente superior e reage indignado às injustiças do mundo — desde que, claro, elas não sejam perpetradas contra judeus, porque aí é relativo e depende do contexto, como lembrou a ex-reitora de Harvard.
(A verdade é que dos judeus se espera apenas que morram, na melhor das hipóteses metaforicamente, de preferência sem fazer estardalhaço para não incomodar as pessoas bacaninhas que estão convencidas de que Hamas e Hezbollah são movimentos românticos de resistência.)
Como tantos outros judeus e judias da sua geração e inclinação política, minha sobrinha só agora está descobrindo que a esquerda consegue ser antissemita de uma forma ainda mais perversa do que a direita, porque frequentemente transveste o seu ódio com a superioridade moral de um “antissionismo” digno e piedoso, e escora os seus argumentos com os de alguns judeus “bem pensantes” que odeiam Israel com todas as forças.
Tenho profunda desconfiança desses intelectuais, famosos sobretudo por serem judeus contra Israel, cuja postura valida os piores discursos antissemitas. Para mim, eles têm problemas que não conseguiram resolver na análise, e no fundo são apenas sérgioscamargos mais letrados e menos primitivos, sancionados pelos seus títulos e pelos meios acadêmicos.
Eles são particularmente úteis para quem cultiva o preconceito e o ódio, mas prefere acreditar que é boa gente e que está “do lado certo da História” — pessoas que querem nos convencer, a nós, judeus e descendentes de judeus, que não são antissemitas em absoluto, e que os errados somos nós ao confundir antissionismo com antissemitismo.
A questão é que ser antissionista é ser, basicamente, contra a existência do estado de Israel; é concordar com a ideia de que os judeus não têm direito nem à autodeterminação nem a um país.
Ser contra Netanyahu, seu governo e sua guerra assassina é outra coisa — com a qual, inclusive, boa parte dos judeus e dos israelenses está de acordo.
Não tenho mais energia para explicar isso.
Tenho certeza de que as pessoas só leem o que querem ler, e só entendem o que lhes convém. Mas a guerra não vai embora, os reféns do Hamas continuam reféns, Gaza é terra arrasada.
Tento mudar de assunto mas é uma mudança fake; o que de fato ocupa o meu pensamento é a constatação de que o judeu é mesmo o judeu do mundo e que, paradoxalmente, Israel é cada vez mais necessário.
2023 e uma versão diferente da minha vida acabaram no dia 7 de outubro, não exatamente com o ataque a Israel, mas com certas reações ao pogrom do Hamas. Cresci ouvindo meus pais falarem do antissemitismo que existia na Europa da qual eles fugiram, mas imaginava que a brutalidade deste sentimento havia ficado no passado; imaginei errado, e descobrir um erro dessas dimensões aos 70 anos de idade também não é fácil.
O que eu percebo do dia 7 de outubro para cá não são mais pequenos deslizes estereotípicos irrelevantes, como falar do “judeu da prestação” ou o uso do verbo judiar, mas uma densa camada de ódio submersa vindo à tona em borbotões, logo normalizada pelo descalabro da guerra.
Agora pode.