19.04.24 | Mundo
"Que liberdade é essa?"
De que maneira a noite de Pessach deste ano será diferente de todas as outras noites de Pessach? Leia na íntegra o artigo de Becky S. Korich, diretora da CONIB, publicado originalmente na Revista da Hebraica.
Ma Nishtaná Halaila Hazeh Mikol Haleilot? “Por que esta noite é diferente de todas as outras noites?” É a pergunta que repetimos todos os anos no Seder de Pessach. Este ano, porém, Pessach desperta uma pergunta adicional: como podemos comemorar a Festa da Liberdade sabendo que nossos irmãos estão presos no cativeiro? A resposta é uma só: não apenas podemos, como devemos, com mais ênfase e força, comemorar e relembrar a libertação do nosso povo da escravidão do Egito. Este ano, a noite de Pessach terá um outro Ma Nishtaná, pois não será só diferente de todas as outras noites do ano em que comemos pão, mas de todas as outras celebrações de Pessach que já vivemos desde o Holocausto.
Estamos tocados e transformados por uma verdade maior que até nós mesmos desconhecíamos. Tempos difíceis nos fazem mergulhar para o núcleo da nossa identidade e nos movem a fazer escolhas em direção ao nosso propósito, que no dia a dia tende a passar desapercebido. Paradoxalmente, são justamente nesses momentos de incertezas, que ratificamos as nossas maiores certezas - os princípios inegociáveis. Sem medo e sem vergonha, colocamos estrelas de David para fora da camisa e reafirmamos a liberdade de ser o que realmente somos.
Por mais contraditório que pareça, são as nossas escolhas – muitas das quais nos restringem - que garantem a verdadeira liberdade. Essa aparente contradição está no âmago da festividade de Pessach. Fomos emancipados da escravidão e nascemos como povo. Esse marco deveria ter colocado fim à servidão e anunciado uma época de autodeterminação, para que nos tornássemos donos dos nossos próprios destinos. Mas não foi isso que aconteceu. Logo depois da saída do Egito, o povo recebeu a Torah, que impôs novas regras através de leis que restringem o que podemos comer, o que podemos falar, o que devemos pensar. Leis que regulamentam como devemos trabalhar, quando devemos descansar, quando devemos jejuar, quando devemos celebrar, quando devemos rezar, como devemos educar os filhos, quanto devemos dar aos pobres, como devemos tratar os vivos, como devemos enterrar os mortos.
Será, então, que nos libertamos de uma forma de servidão para nos subjugar a outra? Que tipo de liberdade é essa, regida por leis e mandamentos que, à primeira vista, parecem nos limitar?
Podemos responder a tais questionamentos por um princípio básico: ser libertado da opressão é o começo da liberdade, não um fim em si. Um homem solto no mundo, sem destino, não é livre. Ser levado pelos caprichos dos desejos e dos impulsos, falar tudo o que pensa, comer tudo o que quer, dirigir um carro a 200km/h, sair gritando na rua, não faz do homem mais livre. Ser verdadeiramente livre é fazer parte de uma sociedade estruturada com uma ampla possibilidade de escolhas, mas também com comprometimentos. Ao contrário das delimitações decorrentes das nossas leis, que pregam a justiça e o amor ao próximo, a antiga servidão no Egito foi o epítome do tipo de escravidão negativa, que destrói o eu espiritual.
Desde crianças nutrimos um desejo natural por liberdade, mas demoramos uma vida inteira para conhecer o seu verdadeiro significado. Sua natureza subjetiva e insidiosa, faz com que ela seja facilmente confundida. Para muitos, liberdade não passa de uma fantasia. Outros a reverenciam ao mesmo tempo que fogem dela, ainda que inconscientemente, porque sabem que ela não se conquista de graça, é um processo dinâmico que exige coragem, determinação e criatividade. Deixar a liberdade fluir naturalmente, sem limites, é jogá-la ao precipício do caos.
A discussão sobre o tema é antiga. Filósofos e pensadores desenvolveram conceitos a respeito dele de acordo com suas perspectivas. Platão defendia que a liberdade está relacionada ao conhecimento e ao domínio da razão sobre as paixões e desejos; John Stuart Mill definiu a liberdade individual como o direito de cada pessoa agir conforme sua vontade, desde que não prejudique os outros; Kant via a liberdade como a capacidade de agir de acordo com as leis morais individuais; Marx, por sua vez, argumentava que o verdadeiro sentido de liberdade só seria alcançado em uma sociedade sem classes, na qual cada indivíduo seria “livre” para desenvolver plenamente seu potencial.
No judaísmo, o conceito de liberdade está inextricavelmente ligado à ideia de ter um propósito claro – um “para que”. Escolher ter disciplina para viver de acordo com a moral e os padrões que nos foi confiado, é a experiência mais libertadora que podemos ter. As leis judaicas foram dadas para construir nossa identidade como povo, essa é a premissa para atingir a liberdade: saber quem somos. Por isso, (I) não podemos nunca nos esquecer da história do nosso povo, (II) devemos transmiti-la aos nossos filhos e (III) vivenciar o judaísmo com um sentimento de alegria e orgulho.
Existe no judaísmo um elemento adicional que extrapola a identidade individual, que está relacionada à nossa alma coletiva: a nossa aliança. Quando encontramos um judeu em qualquer parte do mundo, essa aliança se remexe dentro de nós. Nosso povo é um só, o judaísmo abrange de forma igualitária toda a diversidade e todos os sotaques, independente do costume, do nível de observância religiosa e da ideologia.
Hoje somos sugados para uma vida que nos distrai dos nossos reais objetivos. A tirania da tecnologia, a conectividade permanente e o culto à matéria, nos faz esquecer do mais importante: o que fazemos do nosso tempo, onde colocamos nossas atenções, o que nos motiva a lutar, o que nos desafia espiritualmente. As inteligências fabricadas pelo homem, criadas justamente para libertá-lo das restrições naturais, se não forem bem utilizadas, acabam dominando e escravizando o seu próprio criador. Pessach é tempo, também, para pensar nas nossas amarras pessoais, focar no que é mais importante e não só no que é mais urgente, ouvir verdadeiramente os outros e, principalmente, criar silêncios internos para que possamos fazer boas escolhas.
Na primeira mordida na Matzá neste Pessach, vamos ouvir o clamor de todos que estão presos, de todos que têm fome, de todos que precisam de nós. Só assim transformaremos o pão da opressão no pão da liberdade.