03.10.25 | Brasil

“Crítica à Redução de Votos Judiciais a Identidades Pessoais e o Antissemitismo Implícito”

Em artigo no Times of Israel, a advogada e mestre em direito Lilia Frankenthal aborda o antissemitismo implícito expresso em votos identificados através de elementos étnicos ou religiosos. “A prática que empobrece o diálogo democrático e revive preconceitos históricos”. Leia a seguir a íntegra do texto:

Biografia Não é Argumento: Crítica à Redução de Votos Judiciais a Identidades Pessoais e o Antissemitismo Implícito

A integridade do ordenamento jurídico exige que o debate público sobre decisões judiciais se concentre em seus fundamentos, não na biografia dos magistrados. Reduzir um voto a elementos étnicos ou religiosos é prática que empobrece o diálogo democrático e revive preconceitos históricos.

Num Estado Democrático de Direito, cujo preâmbulo consagrou a construção de uma sociedade fraterna, fomentar o ódio cultural ou religioso é incompatível com o compromisso civilizatório que nos rege. A origem de qualquer julgador jamais deverá ser utilizada para desautorizar suas decisões ou desqualificar sua independência judicial. Hermenêutica não se faz com árvores genealógicas, mas com fatos, normas e motivações.

A autonomia judicial pressupõe que cada ministro decida de acordo com sua verdade jurídica, fundamentada nos autos, prestando contas à lei e à Constituição, e não à sua origem ou identidade. Desvincular o voto de seu contexto processual para atribuí-lo a etnia ou religião é tentativa de deslegitimar o Judiciário e viola o princípio do livre convencimento motivado.

Atribuir causalidade entre identidade e decisão judicial é ato de racismo. A insistência em relacionar a origem judaica de um ministro ao seu voto revive o tropo histórico da “dupla lealdade”, estigmatiza comunidades e instrumentaliza o debate público. Essa prática não apenas compromete o debate racional, mas também amplia as fraturas sociais em um país já marcado pela polarização.

A crítica consequente deve enfrentar os fundamentos do voto (competência, contraditório, imputação, precedente, proporcionalidade) e não recorrer a insinuações ou especulações biográficas. A suspeita de qualquer ministro exigir alegação com fatos, provas e efeitos processuais concretos; apoios institucionais ou fotografias de eventos não se transmutam, por mágica, em vício decisório.

A defesa da memória histórica e a ocorrência contra a banalização do Holocausto ou a demonização de grupos identitários não configuram partidarismo, mas cumprimento de um dever constitucional de prevenção e repressão do racismo. Generalizações sobre comunidades religiosas ou étnicas são ou expressão de ignorância ou de manipulação deliberada.

Quando se reduz o voto a pretexto para ataques pessoais ou para a construção de narrativas conspiratórias, abandona-se o campo da análise jurídica e adentra-se o da política panfletária. A crítica robusta se apoia em fundamentos jurídicos; ruído biográfico apenas desinforma e deslegitima.

Há poucas semanas, esteve no Brasil, a convite do Senado Federal e do IDP, prestigiada instituição de ensino, Steven Levitsky, autor de Como as Democracias Morrem, livro que se tornou leitura obrigatória para todos aqueles realmente comprometidos com o pacto democrático. Um dos sinais de alerta da degeneração democrática é a negação da legitimidade dos oponentes políticos e a prontidão para restringir as liberdades civis dos oponentes. Reforçando essa visão Barbara F. Waters, em Como as Guerras Civis Começam e como Evita-las alerta para o perigo da transformação de opiniões em facções de identidades, gerando divisões, intolerância, desconfiança. E por que não citar Biografia do Abismo, de Thomas Traumman e Felipe Nunes, que trata da polarização política extrema, da calcificação das bolhas, que tem deteriorado o debate público e as relações pessoais?

Ao explorar a biografia judaica de um Ministro da Corte está-se, sem sombra de dúvidas, reacendendo o debate sobre o atual conflito em Gaza e se instrumentalizando a opinião pública para atacar a dignidade do magistrado, e, em último caso, da Suprema Corte e da justiça brasileira. É um expediente retórico que contribui apenas para a destruição de nossa democracia e para a capacidade da sociedade brasileira de fazer política, de dialogar, de encontrar o ponto médio em suas diferenças.

Afirmar que O Ministro Luis Fux votou de determinada forma “por ser judeu” é um ato de racismo antissemita. É tomar a identidade como causalidade e reproduzir o velho tropo da “dupla lealdade”, tão caro à tradição do ódio contra judeus. Tal leitura desvia a atenção do que realmente importa.

A insistência em relacionar a origem judaica do Ministro Luis Fux ao seu voto mais recente e voto polêmico mais confuso do que esclarece. Ao citar sua ascendência romena, sua educação em colégios sionistas e o fato de ter sido o primeiro judeu no STF, o artigo sugere uma linha de causalidade inexistente e, ao final, qualifica seu voto como “gesto de alinhamento com a direita sionista internacional”. Tal retórica transforma a religião em fator de suspeita, estigmatiza uma comunidade e revive fantasmas históricos que buscavam expulsar judeus da esfera pública.

Quanto aos apoios institucionais que o Ministro recebeu para ascender ao Supremo Tribunal Federal, esses não bastam para presumir parcialidade. Fux foi indicado por Dilma Rousseff, aprovado por unanimidade pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, composto por representantes de toda a gama ideológica, a maioria deles sendo da base do governo à época e do MDB.

Aliás, esse mesmo comentário não colocaria em suspeita todos os Ministros que compõem a Turma que julgou o ex-Presidente Bolsonaro? Afinal, precisaram de apoio institucional, à Esquerda e à Direita, para lograr sucesso na sabatina no Senado Federal, três deles foram indicados pelo Presidente Lula (Carmen Lúcia, Cristiano Zanin e Flávio Dino) e um deles foi Ministro da Justiça quando dos atos julgados. Por que lançar suspeita sobre o único Ministro que tinha ciência de que seu voto seria vencido, mas que ousou divergir?

A suspeita de qualquer Ministro não se presume: alega-se com fatos, provas e efeitos processuais. Apoios políticos passados ​​ou fotos de eventos não se transmutam, por mágica, em vício decisório. Usar insinuações em lugar de evidências é intelectualmente desonesto e logicamente falacioso.

O fato do ministro ser judeu não vincula a agenda política alguma. A comunidade judaica é plural, acolhe divergências e cultiva o debate. E é, precisamente, essa diversidade que deve inspirar o crítico a enfrentar os fundamentos do voto, não a biografia do julgador. Divergir é próprio da colegialidade do Supremo, e o “efeito político” de uma decisão é leitura externa, jamais designada de validade jurídica.

O ataque à CONIB e outras entidades judaicas também ignoram o contexto: o crescimento global do antissemitismo exige posturas mais firmes. Reagir a declarações que banalizam o Holocausto ou demonizam Israel é ato de defesa da memória histórica, não de partidarismo. Em matéria de racismo, a Constituição é clara: não é neutra, mas militante em sua prevenção e repressão.

A comunidade judaica, no Brasil e no mundo, não é monolítica. Generalizações desse tipo são ou ignorância ou manipulação. Atribuir ao voto de Fux uma agenda conspiratória é, isso sim, um pensamento conspiratório.

No próximo dia 2 de novembro, farão 15 anos do lançamento do livro O Cemitério de Praga, de Umberto Eco. Um convite à leitura. Eco, de certa forma, falou que os críticos feitos aqui que Simonini é o personagem mais horroroso da literatura de todos os tempos e que ele, Eco, devia concordar com esse julgamento. Simonini era um antissemita e que procurava, nos eventos mais desconexos, uma culpa judaica. E, em Número Zero, satirizou a manipulação jornalística. Recomenda-se a leitura de ambos para quem exerce influência na formação da opinião pública.

Criticar duramente as decisões do STF é saudável. Questionar o voto do Ministro Fux é, igualmente, republicano e salutar para o entendimento público. Muitos o fizeram com competência. A redução da identidade do julgador é intolerável. Imputar motivações ocultas, políticas, aduzindo uma razão exótica de acordo e pacto político internacional é reembalar o velho racismo antissemita em novas roupas.

Queremos uma crítica robusta, que ela se apoie em fundamentos jurídicos e não em ruído biográfico. Ao preferir jogar um “xadrez” de pombos com identidades, maldisfarçando agendas políticas ocultas, o desafio social, no momento, é qualificar o debate público reforçando o compromisso pela coexistência entre povos, princípio constitucional das relações internacionais do Brasil, também entre ideologias.


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