06.10.25 | Mundo
“Finalmente, a hora da diplomacia em Gaza”
Editorial de O Estado de S.Paulo de sábado (4) destaca aspectos complicados do plano de paz do presidente americano, mas reconhece que é a melhor chance desde o início do conflito. Leia a seguir a íntegra do texto:
O Hamas respondeu ao plano do presidente dos EUA, Donald Trump, para a paz em Gaza com um “sim” que soa como avanço significativo – mas, considerando que nada naquela região é exatamente o que parece, recomenda-se prudência e um certo ceticismo. De todo modo, constitui o melhor momento para a diplomacia desde a eclosão do conflito com Israel, provocado por uma agressão bárbara do grupo terrorista há quase dois anos.
Os terroristas anunciaram a disposição de libertar todos os reféns israelenses em seu poder desde 7 de outubro de 2023, conforme demanda o plano de Trump. Além disso, aceitaram a exigência do presidente americano de que a administração de Gaza seja entregue a “um corpo palestino de independentes” com respaldo árabe e islâmico. Esses movimentos representam uma inflexão histórica. Não é uma conversão ideológica, mas um cálculo de sobrevivência. Destruído militarmente, desgastado socialmente e isolado regionalmente, o Hamas percebeu que resistir por resistir já não sustenta sua razão de existir.
Mas os terroristas recusaram-se a aceitar o desarmamento pleno, condição central do plano de Trump, prometendo entregar apenas arsenais pesados, porém exigindo preservar “armas defensivas”. Rejeitaram a tutela internacional direta prevista no plano e insistem em que apenas palestinos decidam o futuro de Gaza. Exigem, ainda, um cronograma explícito para a retirada completa de Israel, enquanto a proposta americana prevê a manutenção de uma zona de segurança. E, sobretudo, o Hamas não abre mão de ter voz política no processo: ao que parece, renuncia a governar, mas não a reinar em Gaza, influenciando decisões sem assumir responsabilidades.
Essa ambiguidade reflete as divisões internas. A liderança política do Hamas, baseada no Catar, é pragmática e pressiona por um acordo que salve a organização. Já os comandantes militares, entocados em Gaza, resistem a qualquer fórmula que signifique capitulação. Para a população palestina, exaurida por dois anos de ruínas, a paz é hoje mais urgente do que a retórica da resistência. Para o Hamas, porém, render-se por completo seria, na prática, desaparecer.
Trump explorou essa fissura com sua teatralidade característica. Declarou que o Hamas estava “pronto para uma paz duradoura” e exigiu que Israel suspendesse os bombardeios para permitir a libertação dos reféns. Foi a aplicação de sua velha lógica de negociação: anunciar o acordo antes que os detalhes estejam acertados, forçando as partes a se manterem na mesa. É parte do seu show, mas também abriu a primeira brecha real em anos de fracassos diplomáticos. O risco, no entanto, é evidente: se o presidente americano se sentir enganado, seu rancor pode se transformar num cheque em branco para o governo israelense retomar a ofensiva sem restrições.
Os obstáculos são inúmeros. O plano prevê a libertação de todos os reféns em 72 horas, mas o Hamas diz não saber onde estão os corpos dos vários cativos que morreram, o que provavelmente é verdade. Além disso, a implementação exige organizar a retirada de Israel, definir o mandato para uma força internacional, dar garantias sobre desarmamento do Hamas e, acima de tudo, estabelecer confiança mínima entre inimigos que se habituaram a negociar sob bombas.
Ainda assim, a resposta do Hamas é uma grande notícia. É a primeira vez que o Hamas admite formalmente abrir mão de governar Gaza e entregar, mesmo que em prazos incertos, seu trunfo máximo: os reféns. Israel, pressionado por Trump e pela fadiga causada pela opinião pública interna e externa, também se vê obrigado a aceitar que a guerra não pode ser um fim em si mesmo. O mundo árabe, por sua vez, colocou-se de maneira inédita contra o radicalismo do Hamas, exigindo que os terroristas se dobrem à lógica da reconstrução.
Nada disso garante a paz. Mas é um início. A resposta positiva do Hamas e de Israel, ainda que sob pressão de Trump, é prenhe de oportunidades, mas também de riscos. Poderá ser o início do fim de uma guerra que devastou Gaza, matou dezenas de milhares e corroeu ainda mais a confiança entre israelenses e palestinos. Mas qualquer passo em falso pode adicionar outro triste capítulo à longa história de oportunidades desperdiçadas na região.